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Maio 2024
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Como viviam as pessoas
escravizadas pela Igreja no Brasil
As grandes instituições religiosas do
Brasil colonial e imperial tiveram negros escravizados — e
muitos. Pesquisas recentes apontam para um número de
escravos muito acima da média do que havia nas grandes
propriedades rurais, práticas de incentivo à procriação para
aumentar a quantidade de mão de obra e até mesmo uma tabela
de preços para quem quisesse comprar a alforria — com
critérios específicos para precificar cada ser humano. Os
escravizados mantidos por mosteiros e conventos também eram
obrigados a professar a fé católica, participando de missas,
momentos de orações e recebendo os sacramentos. Os que se
rebelavam quanto à conversão costumavam ser punidos com
castigos "de forma exemplar" ou seja, com intensidade
suficiente para convencer os demais a não repetir gestos de
desobediência. De quebra, a luta pela aquisição de liberdade
— ou seja, a compra de uma carta de alforria - costumava ser
mais difícil para um escravo de ordem religiosa do que para
alguém que estivesse sob o jugo de um senhor leigo. Por
outro lado, a libertação dos escravizados por mosteiros e
conventos ocorreu em 1871, 17 anos antes da assinatura da
Lei Áurea, em 1888.
"Escravos da religião"
Autor do recém-lançado livro Escravos da
Religião (Ed. Appris), pesquisador na Universidade Federal
Fluminense (UFF) e idealizador do podcast Atlântico Negro, o
historiador Vitor Hugo Monteiro Franco revira arquivos da
Ordem de São Bento desde 2014. O material foi tema de sua
iniciação científica, de sua monografia de conclusão de
curso, de seu mestrado e, agora, está sendo esmiuçado em seu
doutorado. "Uma das principais descobertas foi o próprio
termo 'escravos da religião'", conta ele. "Não foi um termo
que eu criei. É um termo da época, que encontrei em livro de
batismos. Foi um choque para mim."
Na ocasião, ele estava analisando os registros dos nascidos
no século 19 em propriedade rural mantida pelos beneditinos
na Baixada Fluminense, a Fazenda São Bento de Iguassú. "Na
hora de qualificar os pais, o monge não os qualificava como
'escravos da Ordem de São Bento', mas sim como 'escravos da
religião'." Para o pesquisador, residia aí uma
diferença fundamental entre o modo de vida dos escravos
mantidos por instituições religiosas: o fato de o senhor não
ser uma pessoa, mas sim uma entidade. "Parece simples, mas
não é. A situação geral da escravidão no Brasil é de
escravos privados, de senhores leigos. No caso dos 'da
religião', eles não pertenciam a um monge específico, eram
de propriedade coletiva. E isso teve repercussões na vida
dessas pessoas para sempre, porque influenciava na forma, no
dia a dia deles", diz o historiador.
Franco ressalta que o cotidiano desses negros escravizados
estava "regulado" pelos hábitos religiosos do catolicismo e
da vida monástica. "Por mais que a sede dos religiosos
estivesse no centro do Rio e a fazenda na Baixada
Fluminense, sempre havia um monge cuidando de lá. Era o
chamado padre fazendeiro", contextualiza. "Ele fazia o
trabalho espiritual: batizava as pessoas, casava-as,
sepultava-as. Os beneditinos eram um tipo de senhor que
conhece muito bem sua escravaria, anotando tudo em muitos
detalhes." "Os monges conheciam cada momento, cada fase da
vida dos seus escravizados. Por mais que as propriedades
fossem enormes, eles tinham o controle administrativo sobre
aquelas pessoas, ao contrário dos senhores leigos, que
muitas vezes tinham um contato muito pequeno com os
escravizados", compara. "Isso dava (aos religiosos) um poder
muito grande. Ser 'escravo da religião' significava ter sua
vida controlada por uma instituição religiosa", acrescentou
Monteiro Franco.
Em 1871, somente os beneditinos tinham um total de 4 mil
escravizados
E não era um rebanho pequeno para ser controlado. De acordo
com as pesquisas de Franco, quando os religiosos emanciparam
seus escravos, em 1871, somente os beneditinos tinham um
total de 4 mil escravizados. "Eram três as principais ordens
religiosas escravistas do Brasil: os jesuítas, os
beneditinos e os carmelitas. Em menor escala, os
franciscanos também", elenca.
A primazia da Companhia de Jesus foi até o século 18. Em
1759, contudo, os jesuítas foram expulsos do Brasil. E aí os
beneditinos assumiram essa posição. Durante o século 19,
período analisado pela pesquisa de Franco, a Fazenda de
Iguassú costumava ter um número constante de cerca de 130
escravos. "Destoava muito das outras fazendas da região, em
que havia em média 10 escravos por senhor", afirma o
pesquisador. Mas essa propriedade não era a maior das
beneditinas. Em Jacarepaguá, a fazenda dos religiosos tinha
mais de 300 escravos. Em Campos dos Goitacazes, 700. "E
essas são só as três maiores propriedades dos monges de São
Bento", diz Franco. "É muita gente. Era a principal ordem
escravista do Brasil. Eu nem considero a Ordem de São Bento
uma grande proprietária [de escravos]. Era uma
megaproprietária, estava acima dos grandes proprietários,
era a elite da elite."
Incentivo à gravidez
Uma maneira de garantir a abundância de mão de obra escrava
era o incentivo que os monges davam para que as escravizadas
tivessem muitos filhos. "As mulheres que procriavam pelo
menos seis filhos conseguiam privilégios, tais como não
realizarem trabalhos 'penosos'", conta o historiador Robson
Pedrosa Costa, autor do livro Os Escravos do Santo (Editora
UFPE) e professor no Instituto Federal de Pernambuco e na
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).A partir de 1866,
as mães de pelo menos seis filhos passaram a ser a liberdade
gratuita - desde que elas "estivessem devidamente casadas",
pontua o historiador.
Mapa que situa a propriedade dos beneditinos na Baixada
Fluminense
Para os monges senhores de escravos, religião era uma coisa,
negócios eram outra. Pelo menos é o que fica claro em outro
achado do historiador Monteiro Franco: nos registros de
batismo, a maior parte das crianças era registrada como
sendo filho de mãe solteira. Havia uma razão econômica para
isso. "Até pouco tempo atrás se acreditava que as ordens
religiosas de maneira geral incentivavam o casamento por
causa do valor cristão do matrimônio e também para um fator
de incentivo da reprodução da comunidade escrava, do ponto
de vista senhorial", pontua o pesquisador. "Mas o que
encontrei foi a maior parte das mulheres como mães
solteiras." Segundo ele, isso não significa que essas
mulheres não tivessem relacionamento estável ou que vivessem
na promiscuidade. A questão chave estava na propriedade da
criança que nasceria dessa gravidez. Em caso de mãe e pai
sacramentalmente unidos, poderia haver alguma discussão se o
filho pertenceria ao senhor da mãe ou do pai.
Então, os beneditinos preferiam não oficializar relações
estáveis quando as mulheres de sua fazenda tinham homens de
fazendas vizinhas. Quando ambos eram da mesma propriedade,
aí sim, o sacramento do matrimônio era concedido. Tais
condutas fizeram com que os beneditinos conseguissem manter
um grande número de escravos no século 19, mesmo com a
dificuldade, para os latifundiários escravocratas,
decorrentes da Lei Eusébio de Queirós - que, a partir de
1850, proibiu o tráfico negreiro. "Estas instituições
[religiosas] construíram, ao longo dos séculos, grandes
corporações, muito semelhantes a grandes empresas pautadas
em um complexo sistema organizacional", afirma Costa. "No
caso dos beneditinos, foi possível entender que a
instituição foi capaz de construir um sistema de gestão
eficiente e duradouro, que garantiu o fornecimento de
escravos para as suas propriedades sem recorrerem ao
tráfico." "Claro que eles compraram escravos no século 19,
mas foram poucos", completa o professor. A estratégia
consistia em incentivar a procriação e a tentativa de
manutenção das famílias. "Eles evitavam ao máximo vender
seus escravizados, principalmente a separação de famílias,
uma instituição sagrada para os monges. Apenas os cativos
considerados 'incorrigíveis' deveriam ser vendidos. Mas eles
foram poucos. As famílias escravizadas eram extensas e
duradouras. Isso garantia a perpetuação do quantitativo de
escravos", explica Costa.
Alforrias
Prática relativamente comum entre
escravizados no Brasil, a compra da liberdade era mais
difícil para um "escravo da religião". Enquanto no caso
daquele que servia a um senhor leigo bastava convencê-lo —
com acordos e, muitas vezes, um valor em dinheiro — no caso
dos monges era preciso passar por um processo formal.
O historiador Vitor Hugo Monteiro Franco revira arquivos
da Ordem de São Bento desde 2014 - foi assim que encontrou o
termo "escravos da religião"
Aquele que pleiteava a alforria precisava fazer uma petição
aos religiosos. Não havia negociação direta. "Estamos
falando de uma propriedade institucional", lembra o
historiador Franco. "Não era simples. Os monges liam a
petição e colocavam para votação, usando favas pretas para
marcar as negativas e favas brancas para sinalizar
positivo." A partir da década de 1850, a Ordem de São Bento
criou uma tabela de preços para casos de alforria. Pelo
documento, o preço dos escravizados variava conforme saúde,
idade e sexo. "O valor ia aumentando de acordo com a idade
até a fase mais produtiva. A partir da adolescência, eles
passam a entender que um homem pleno de saúde vale mais do
que uma mulher", explica Franco. "Esse documento mostra com
todas as letras qual a posição de um senhor de escravos:
transformar as pessoas em commodities", define ele.
Violência e trabalho
Embora haja uma corrente que acredite que
a escravidão impetrada por religiosos fosse mais branda do
que a conduzida por senhores leigos, pelos valores cristãos
supostamente respeitados, Franco não compactua com essa
ideia. Primeiramente porque é enfático ao dizer que a
privação da liberdade a que um escravo está sujeito já é,
por si só, uma grande violência. Além disso, ele encontrou
registros que atestam atos de crueldade. "Tem um caso, em um
fazenda de Cabo Frio, também dos beneditinos, em que dois
monges foram presos depois de matarem, de tanto espancar, um
escravizado. Isso no século 18", conta ele. "Olha o nível da
violência." Ele também se deparou com relatos de fugas em
que o escravo, uma vez capturado, era submetido a um
"castigo exemplar". O mesmo acontecia para quem não
demonstrasse seguir a fé católica. "Há um registro de uma
visitação realizada por um monge (encarregado de vistoriar
os trabalhos do padre fazendeiro), que dizia que era bom que
o mesmo não descuidasse do espiritual dos escravos, para ver
se eles estavam seguindo os preceitos do cristianismo",
aponta Franco. "E, verificando que não estivessem seguindo,
que fossem punidos exemplarmente. Se não se redimissem, que
fossem vendidos."
Mas em que trabalhavam os "escravos da religião"?
Boa parte deles fazia um trabalho semelhante a qualquer
outro escravo de propriedades rurais. As instituições
religiosas tinham muitas terras e nelas cultivavam cana de
açúcar e outros insumos valiosos para a economia da época.
Quem fazia esse trabalho era a mão de obra escrava. No caso
dos religiosos, contudo, havia também muitos escravos com
trabalhos especializados. Carpinteiros, ferreiros, oleiros,
sapateiros, boticários, enfermeiros. "Além daqueles que
serviam os monges no claustro: botavam a comida na mesa,
tocavam o sino da capela, seguravam o livro na hora da
missa, e por aí vai", diz o historiador Franco. Nesse
sentido, a Ordem de São Bento investiu em capacitação. Como
eles tinham grandes propriedades com necessidades
específicas, passaram a treinar os escravos que pareciam
mais aptos a trabalhos específicos. "Para eles, era melhor
fazer isso do que pagar um sujeito livre para desempenhar
esses papéis", afirma. Esses que tinham ofícios
especializados não eram inimputáveis a sofrerem castigos.
"Encontrei um registro de um monge que se dedicava a ensinar
ferraria a escravos. E ele era tão violento que acabou sendo
deslocado de posição", exemplifica Franco. Desempenhar essas
funções especiais, por outro lado, conferia prestígio dentro
da comunidade escrava. E muitos desses profissionais
acabavam conseguindo fazer trabalhos "por fora" e, assim,
juntar dinheiro para, no futuro, comprar a alforria.
Abolição prematura
As ordens religiosas libertaram seus escravos ao longo de
1871, ou seja, 17 anos antes da Lei Áurea. A primeira
instituição a fazer isso foi a Ordem de São Bento. Aos
poucos, os beneditinos foram seguidos pelos demais
religiosos. Segundo os pesquisadores, esse movimento era
resultado de um embate da Igreja Católica com o Estado.
"Havia uma relação de tensão entre Estado e as ordens
religiosas", pontua Franco. "Estava ocorrendo um embate
político em que cada vez mais a classe política e outros
setores da elite brasileira acreditavam que os religiosos
tinham propriedades demais, escravizados demais e eram
improdutivos. Por outro lado, o Estado via a chance de se
apropriar das propriedades dos religiosos." Ao libertar os
escravos na mesma época da promulgação da Lei do Ventre
Livre, as instituições católicas geraram uma comoção
nacional.
"A abolição não significa simplesmente a questão humanitária
por trás da liberdade do indivíduo, mas também uma questão
de ordem econômica sobre aqueles que você teria de estar
empregando", afirma o historiador Philippe Arthur dos Reis,
pesquisador na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
"O custo de manutenção desses indivíduos, em geral era muito
mais dispendioso ter os escravos do que importar pessoas de
fora e pagar salário", acrescenta. O historiador Costa
lembra que desde a Independência, em 1822, "várias vozes
começaram a sugerir que as ordens religiosas eram
instituições inúteis e péssimas administradoras de seus
bens". "Quando os debates sobre a abolição se acirraram a
partir de 1865, novamente as ordens, consideradas grandes
escravistas, foram colocadas na berlinda. Uma lei de 1869
instituiu que as instituições religiosas deveriam libertar
todos os seus escravos em um prazo de 10 anos. Até lá,
poderiam libertá-los ou criar contratos de prestação de
serviço por tempo determinado", detalha o historiador.
"Prevendo uma maior intervenção do Estado e do Parlamento, a
Ordem de São Bento do Brasil já havia se antecipado,
decretando a liberdade de todo as crianças nascidas a partir
do dia 3 de maio de 1866", diz ele. Essa medida teve impacto
nas autoridades. O imperador Dom Pedro Segundo (1825-1891)
presenteou o então abade geral com uma caixa de ouro
cravejada de diamantes. Já o deputado Tavares Bastos
(1839-1875), voz abolicionista, declarou que o gesto era "um
ato generoso e solene" - e que deveria ser seguido pelas
demais instituições religiosas.
Em 1871 veio a libertação total dos "escravos da religião"
Fonte:
https://www.bbc.com/portuguese/geral-57099524
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